Destino de apenas 5% do bolo tributário nacional, as prefeituras costumam enfrentar uma longa trajetória para cobrar tributos na Justiça e recuperar suas receitas. Para evitar que dívidas oriundas da cobrança de impostos como IPTU ou ISS simplesmente prescrevam, o poder público gasta em média oito anos em batalhas judiciais até concluir um processo de execução fiscal, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Um custo que estrangula o Poder Judiciário, continua a aumentar a dívida ativa dos municípios e pune tanto poder público quanto contribuintes com a carência de serviços, mas que tem sido visto como oportunidade de inovação para as fintechs, principalmente em ano de eleições majoritárias.
Com a sanção da Lei Complementar (nº 194/2022), que limita entre 17% e 18% a cobrança do ICMS sobre produtos e serviços essenciais (como combustíveis, energia elétrica e telecomunicações), a Confederação Nacional dos Municípios (CMN) também estima uma situação preocupante: a nova medida pode representar uma perda anual da ordem de R$ 15 bilhões para as prefeituras, com prejuízo significativo para as pequenas e médias cidades.
Tanto o estrangulamento do Judiciário como a consequente redução da cota-parte do ICMS são gargalos que, para a startup baiana de recuperação de crédito Proteste, devem ser vistas como oportunidade de utilizar a tecnologia para melhoria da gestão pública.
Neste ano, a fintech arregimentou o apoio institucional estratégico da Câmara de Comércio, Indústria e Turismo Brasil-Portugal. A entidade sem fins lucrativos vem somando esforços como embaixadora da empresa junto ao poder público e à iniciativa privada. Em todo o país, são mais de 2,4 mil associados, representados por 18 núcleos estaduais.
“A Câmara seleciona e investe em iniciativas de inovação capazes de melhorar a qualidade de vida nas cidades, e esse projeto tem o perfil que acreditamos. O Nordeste é uma região catalisadora de startups e nós, como entidade bilateral formada por empresários de diversos setores, buscamos fomentar a estruturação de soluções que vão fazer a diferença para as pessoas”.
Destaca a diretora de Inovação e Relacionamento com o Mercado da Câmara Brasil-Portugal, Daniela Freire.
A empresa começou a ganhar corpo em 2017, depois que um de seus sócios-fundadores, o procurador da Fazenda municipal David Luduvice, sentiu na prática a necessidade de usar ferramentas de business intelligence para otimizar a cobrança de impostos e taxas devidos à Prefeitura de Salvador.
À frente da coordenação da Procuradoria Fiscal de Salvador na época, o advogado desenhou um projeto-piloto junto com a equipe de tecnologia do órgão e conseguiu implementar, em quatro meses, um sistema de protesto extrajudicial eletrônico que, anos depois, inspiraria a fundação da Proteste, empresa onde ele atualmente desempenha a função de consultor jurídico.
“A solução surgiu de uma experiência de campo, da necessidade de resolver e gerir processos de recuperação de crédito em massa. Acabamos criando uma ferramenta disruptiva, que muda a cultura da cobrança do dinheiro público e traz resultados para toda a sociedade”.
Comenta Luduvice.
“A gente conseguiu evitar que a maior parte (95%) dos cerca de 30 mil títulos que são cobrados por mês na cidade de Salvador seguissem o rito burocrático que tradicionalmente tomam: o ajuizamento de uma ação de execução fiscal”.
Argumenta o servidor público, hoje licenciado da função para se dedicar ao empreendedorismo.
COMO FUNCIONA A SOLUÇÃO
A Proteste possui atualmente duas plataformas – uma voltada para a gestão pública e outra para a iniciativa privada. A solução é interligada aos sistemas da Sefaz e consiste em permitir que a cobrança seja encaminhada eletronicamente para os cartórios de protesto, sendo cumprida a ordem em um prazo médio de três dias, após a notificação do protesto.
Um contribuinte que é alvo deste tipo de medida extrajudicial ganha um status de mal pagador que o impede de obter crédito na praça, desde financiamentos bancários até acesso a cheque especial. Mas as vantagens para a prefeitura vão além do endurecimento das consequências para o devedor.
A adoção do software não está atrelada à assinatura de qualquer mensalidade ou taxa de manutenção: a cada protesto, a administração pública remunera a empresa com um valor fixo, que varia de R$ 20 a R$ 35 por título protestado, conforme o volume do estoque de Dívida Ativa.
PROJETO-PILOTO
Assim que ganhou o mercado, a iniciativa foi implementada como projeto-piloto pela Prefeitura de Gravatá, no Agreste de Pernambuco. Distante 83 quilômetros do Recife, o município tinha como um de seus principais gargalos a inadimplência do IPTU devido pelos proprietários de imóveis de luxo em condomínios fechados, empreendimento bastante comum na cidade, que é um conhecido destino turístico localizado na região serrana do estado.
“Gravatá protestava 100 títulos por mês. Com o sistema, passou a protestar cerca de 2 mil títulos”, detalha David. De acordo com o seu cofundador, outra função estratégica da Proteste é acompanhar todos os lotes da cobrança. “Como se interliga em tempo real aos sistemas da Sefaz, o software vai identificando e dando baixa, gerenciando aqueles débitos que foram parcelados, inclusive sabe quando o contribuinte deixou de pagar alguma parcela. E esses saldos são identificados também para atualização e novo protesto”, explica.
Em um ano e meio, o município conseguiu recuperar cerca de R$ 4 milhões em créditos fiscais.
“De repente, os créditos começaram a gerar receita para a cidade. O que atrapalhava o município ao cobrar através do processo judicial é que os atos de citação, notificação e intimação ainda são feitos no mundo físico, o que acaba transformando um processo que hoje corre eletronicamente, no fim, numa ‘entrega de pizza’”.
Compara o consultor jurídico.
Segundo Luduvice, um dos gargalos da máquina do Judiciário é a necessidade dos atos formais das citações judiciais serem feitos no mundo físico.
“Pode ser que um dia seja tudo virtual, mas até que os devedores sejam validamente citados no multiverso, o mais eficaz é construir uma mudança cultural no Brasil, para que a cobrança da Dívida Ativa, ou a maior parte dela, seja feita fora do Judiciário”.
ESTRATÉGIA DE ACELERAÇÃO
No momento, a Proteste tem negociado a implantação de sua solução com pelo menos sete municípios no Ceará, em Pernambuco, na Bahia e no Piauí. Recentemente, o sistema também foi apresentado à Prefeitura de Niterói, no Rio de Janeiro. A expectativa é a de que, com o apoio da Câmara de Comércio Brasil-Portugal, a startup passe por uma relevante fase de aceleração nos próximos meses.
“Estamos diante de uma solução de inovação que otimiza a gestão pública. Já praticamos iniciativas semelhantes em outras frentes, e a desburocratização desse tipo de ação é uma frente que implica em resultados concretos”.
Reforça Daniela.
Tendo a companhia energética EDP como principal mantenedora, as câmaras portuguesas possuem mais de 900 convênios de cooperação assinados com universidades, parques tecnológicos, governos, federação de indústria, sistema S, além de instituições públicas e privadas do Brasil e de Portugal para facilitar negócios e parcerias entre os dois países.
PROPOSTA DE PROJETO DE LEI
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cerca de 90% dos processos em tramitação no Judiciário brasileiro correspondem historicamente a execuções fiscais. Por isso, o idealizador da Proteste acredita que uma proposta de projeto de lei tornando obrigatório o protesto extrajudicial de dívidas de menor monta desafogaria a Justiça, resultando em economia para o erário.
“A maior parte das dívidas que se acumulam na Fazenda pública são de até 20 salários mínimos (R$ 24,2 mil). Neste valor, aquele devedor com efetivos elementos para se opor à cobrança poderia se defender sem um advogado nos Juizados Fazendários. O volume de créditos que deixariam de ser ajuizados pode ser muito expressivo”.
Opina David Luduvice.